Ricardo Giuliani

UM GAÚCHO

Muito pouco a geada ainda me pode branquear o cerro. Das antigas e velhas melenas, pouco sobra pra atividade do inverno da vida que, ao se aprochegar, tisna de branco os fios mais tênues que vai encontrando por diante. A cabeça do vivente vai mais lenta, mais desconfiada, mas pensamento não se refuga, pelo menos, é o que dizem os paisanos. Se passar por perto, seja a questão que seja, se a mais ou menos 12 braças, quedar-se-á pealada pelo trançado de seis tentos, curtido por existência, aprendizado e recuerdos.

O espinhaço já vem dobrado pela carga do tempo. Nas têmporas, pele vincada por solaços e tempestades, expondo a profundidade e os mistérios dos rios e as denúncias de agruras da lida e do campo e da pampa. A existência é como o talho no couro, marca e fica pra toda a eternidade. A vida, caborteira que é, se ajoelha diante dos que não nasceram de susto, serve de comida às esporas e de sustento pro mango que se apruma e sarandeia desde a marca até o focinho. A vida é doma constante. Praquele que vem sogado na história, não há corcoveio que o faça perder o rumo. Se é certo?, não sei. Mas que o rumo do saber e do conhecimento e da sobrevivência cobra caro, ah! que é certo é certo!

A ignorância não só produz ou espalha besteiras e preconceitos e mais ignorância; distribui bestas preconceituosas para infestar essas terras todas e tudinho, aos olhos de Deus, nomais.

Não sei por onde lhes disse, mas tenho certeza que disse, me chamo Hescremêncio. Conterrâneos me dizem quaraiense, meu Pai, quaraiano se afirmava. Eu?, buenas, vivo num lugar imaginário, clavado nas enrugadas coxilhas da Pampaláxia, batizado Boa Ventura. Tirei esse nome das obras do Cyro Martins, também filho da terra e comuna como Eu mesmo. Percebam das letras que aqui acolhero, já que comuna me denunciei, que delas não vertem gosmas ou nojos. O mais grave que se pode assuceder es una idea qualquiera, sem arroubos ou pretensões de certeza, ou por mais porqueira que seja ou a enxerida se meta, não passa de só uma ideia que pode mudar uma vida ou maltratar um sotreta.

Sou um gaúcho, um outro gaucho qualquiera, venho indefinido pelo artigo. Um gaúcho vem da história, do folclore ou simplesmente de mim mesmo. É do lugar onde estejas, ou de onde o queira ver, que terás El gaucho, bem ao feitio dos hermanos uruguaios e argentinos, como les disse, produto de história, folclore e de vida vivida. Não há nada melhor do que a literatura dos antigos para conhecer esse tipo, figura de singular imponência ou de impotência sentida a partir das realidades não ditas. Sarmiento, Alcides Maya ou Augusto Meyer, Hernandéz, Cyro ou Rivadavia, Darci Azambuja, Apolinário Porto Alegre, Barbosa Lessa e tantos ilustres esquecidos – mas se não tanto, pouco lidos -, da academia ou dos primeiros grêmios gauchescos, bem mostram el gaucho, bem descrevem a construção da Pampaláxia e dos seus personagens benditos, ou, por outra, com seletividades aperfeiçoadas nas habilidades não menos vistosas de literaturas outras que não as que antes lhes referi. Sou um gaúcho, e me chamo Hescremêncio. A origem do nome não sei. Batizado que fui, me basta.

Hescremêncio, foi quem lhes disse que sou. Se bem me lembro, é o que lhes tenho dito e reafirmado. Por vezes, me pego em ganas de me grudar num sorocabano, aquele facão bem possante usado pelos birivas paulistas pra abrir picadas nos matos e para formar o Rio Grande que temos. Ali pela costa de Mostardas empezaram caminho até Montevidéo. Tropeavam mulas, partindo de Sorocaba, para que a prata de Potosí ganhasse os destinos dos cofres do colonizador espanhol. El gaucho, o verdadeiro lidador campeiro, nunca usou o facão. Era amasiado com a faquinha de palmo que lhe resolvia todas as demandas da lida. A bicheira extirpada, os cascos tratados, a vaquilhona carneada e a guasca bem cortada para montar vestimentas e petrechos domésticos. Para a defesa pessoal, aquela faquinha pequena estava a preceito e, quando em descanso, atravessada na cinta, não representava estorvo pra montaria. Facão é pra quem vive no mato ou pra quem quer cruzá-lo, por desejo ou por questão de sobrevivência; faca grande não serve ao churrasco e muito menos à degola, que nos diga o Nego Latorre, que dela muito requereu serviços nos mangueirões de Bagé. 

É por essa e outras que não entendo os gaúchos de hoje que em nada parecem com o de antanho. Como podem comer um assado munidos de faca urdidas pro corte do mato para abrir picadas e nunca prum corte fino e certeiro? Imagino um índio desses, munido com um sorocabano, grudado num carrapato ou raspando um carbúnculo. Seria um desastre total. Carcula?

Bem vista a história do pampeano, a prostração haverá de ser imensa. Bem lidos os livros que contam a história real da nossa gente, lhes asseguro, haverá susto e surpresa. Por hoje, qualquer relativização ao folclore, ou mesmo um convite à história, vai fazer aparecer um gaudério de apartamento pronto para assumir briga e para morrer matando, bem ao feitio de uma valentia que não guarda razão ou procedência ou justificativa histórica entre nós os gaúchos da cepa.

Penso eu que cavalgar é modo de ir encurtando as distâncias sem nunca tirar o olhar do porvir. Se o cavaleiro vai arqueado, é porque o espinhaço já vai pesado pela passagem dos anos e pela carga da experiência. Se no alvorecer do dia ou na caída da tarde vires a silhueta do gaúcho, montado no pingo companheiro, postado sobre a dobra da coxilha, mirando pra além do horizonte, creia, não é o Monarca do Pampa, é o gaúcho comum a mirar pra terra que nunca foi sua, vagueando à procura de caminhos pro miserável ranchito, concessão e graça dos patrões que a tudo possuem. Já lhes disse isso com insistência e um pouco de provocação. Mas, com sinceridade, não sei bem o que se passa por essa quadra de século e por essas mentes vadias que teimam em não ver as cidades recheadas por gaúchos a pé.

O gaúcho de parque ou de apartamento é a expressão do monarca mistificado, do gaúcho que nunca existiu; um ser imaginário parido à base de crenças que traz como pano de fundo os desertos verdes e as estâncias que ficaram no tempo e nas ruínas e que nunca mudaram de dono. Se divididas foram, as foram na cama! O gaúcho a pé, recheando arrabaldes e cantorias, peão que sempre foi e que é, se mete a patrão por um dia, por mais de mês não passa, e canta suas crenças e despreza, sincera e honestamente, e ingenuamente, por que não?, o homem, que é peão, sofrido na carne e no osso.

Dia desses, e divido o assussedido, corria o início da noite e notei acocorados junto às patas do garanhão que conduziu Bento Gonçalves pra longe do arroio da Azenha, alguns gurizotes pilchados em efusiva discussão. Confesso-lhes, me chamou a atenção o convescote juvenil que nunca antes havia visto nas bandas da Capital. É certo que não ando em festas de CTG, mas assim como estavam, que não havia visto, e fiquei crente de um troço: quando as forças e as gentes fazem junção, não há cristo que segure.

Uma gurizada ervoafetiva aquela, na boa acepção da expressão, por supuesto, pois cevavam yerba da buena, Baldo de pura folha, das feitas aqui no Rio Grande e mui bem apreciadas pelas bandas dos castelhanos. Entre um mate e outro, debatiam as questões da Pampaláxia. Me aprocheguei mui leviano, caminhada a palmo medida, e me parei em observações e pensamentos. Tudo acontecia bem ali bem na frente do Colégio Júlio de Castilhos, o carinhoso Julinho, onde nossos folclores empezaram organização e estilo para resistir ao imperialismo estrangeiro e onde em tempos de ditadura muita resistência pariu.

Tal era o meu ensimesmamento com a charla que ia densa, que um dos guris, semiornamentado, tênis, bombacha uruguaia, lenço verde na gola e um boné do tipo nike, viradote pros lados da orelha, se veio querendo me emparedar. “Quáu é?! Tá olhando o quê?”  Não, não é nada, só tava prestando atenção na charla que pelo visto gira sobre as nossas histórias e tradições, não é? “Mas até me pareceu que tu tava vendo alma do outro mundo, mano véio.” Buenas, pra teu governo, e fui me achegando de mansito. Quando vejo alma do outro mundo já sento e convido pra dividir um cigarro e pra prosear sobre as lambanças das bandas do céu ou do inferno. Mas Chê, amistoso que ia, tenho aqui uma garrafa de carabanchel, bamo dividi e proseá. Quando ouviram o nome da pinga, se entreolharam e quase que em coro, todos juntos falaram: “carabanchel???? Mas que é isso, mano véio?” É um trago típico dos antigos gauchos argentinos, destilada a base de mel. É fracota a porqueira, mas buenacha pro beiço, pra ajudar o tempo passar e auxiliar a palavra na cruza da goela.

A charla tratava sobre o Bento e o lado para o qual tá virado o corcel do chefe farroupilha, mas qual é o problema? Dei uma inticada para não parecer mais um desses janotas.

“Mano véio, se o Bento não conseguiu passar pelo arroio da Azenha, tu acha certo ele encravado aqui, dentro de Porto Alegre, e virado pra direção do centro?” Mas Chê? Como é teu nome guri? “Marco Antônio, mano véio, mas pode me chamar de Tonho”. Como não sou dado a intimidades, e fui logo disparando o nome completo do xiru que bem me recebeu, é certo, depois de um retovo inicial. O Marcontonho, tá bem posta a questão. É por essas e outras que a história perde de luz pro folclore. E quando o folclore substitui a história em base da mais pura ignorância é que a porca começa a torcer o rabo e bamo perdendo as referências culturais e nos perdendo na política e nas lidas da ciência econômica.

Peguei o carabanchel e anunciei que estava deixando pra eles vazar a noite, modo de azeitar a goela e levar longe as discussões. Meio cosquilhoso diante da gurizada nova que vi bem instruída e cheia de buenas intenções, fui virando as costas para deixá-los na charla, mas não resisti e provoquei: boa pauta, gurizada, boa pauta; passada essa quem sabe vocês discutem um acampamento que acontece no coração da cidade que recebeu do Imperador o título de mui leal e valorosa, pode ser? Peguei na ponta do sombrero e o torci em sinal de respeito e de despedida e me fui, sem antes anunciar que podiam me esperar por outras noites, pautas de gaudério e de gauderiada é o que não nos falta. Pautas que buscam verdades, menos nos falta ainda. Gente com vontade de estudo e cabeça aberta pra discussão dura e sincera, mas bah!, é o que mais tem faltado por essas bandas gaúchas.

São reuniões que deveriam ser contadas em termos de dia e de mês. Hescremêncio é quem sou e tenho dito por onde ando. Não perco o jeito ou a oportunidade para discutir o Rio Grande. Nos tenho visto hace tiempo crescer como cola de potro. Nada me resta se não dar aquela inticada, bem ao feitio do zorrilho que mija na volta das casas só pra esculhambar com a tranquilidade da cachorrada.

Mas buenas, Dom Segundo Sombra, já disse mais ou menos assim: galopar é reduzir lonjuras; chegar, é só um pretexto pra partir.

 

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