O gajo era desconfiado. Pra tudo que passava olhava, não inticava jamais, mas jamais abaixava as pálpebras. Mirava sem querer provocar, cuidava sem parecer o manhoso que de fato era. O pito escondido por entre os cinco dedos organizados na forma de cunha, de quando em vez era levado pros beiços. Sorvia, sugava e enrugava a testa e voltava a mirar pr’algum olho que não o estivesse mirando.
Esse o jeitão de um cristão que não inspira confiança. Atento sempre andava, em olho, bem, nunca emparelhava os seus. Fumava as porcarias que todos fumavam; afinal, e dizem os cola-fina, cigarro é merda do jeito que vier. Mal sabem eles, pensava o gajo, como é bom o sorver um pito, o ruim é que faz um mal danado. Mas parceiro melhor, não tem. A bagana acesa esquenta a palma da mão e a vai pintando na cor do ocre, as pontas dos dedos amarelam feito ambrosia de avó, que pra dar diferença e marca, é feita sempre um pouco pra além do ponto. O cheiro, bem, é uma bosta mesmo, mas fazer o quê?, nada é perfeito.
O cristão se mantinha daquele jeito matreiro e sobrevivia sem qualquer cultura do espírito. Não nutria muito respeito pelo vigário local. Nas vezes em que procurou o Senhor nos bancos da capela encostada no prédio da prefeitura, mal se iam algumas rezas e lá se vinha o sacristão pedindo contribuição. É certo que o saco sempre andava vazio, a plata era pouca, e no povo a vontade de doação, muito menor ainda. É fato que nunca emprestou um pila sequer para as obras do Nosso Senhor.
Capaz?!, pensava consigo: lá vou eu largar o que não tenho nas mãos de quem nem ganas de conhecer eu levo? Mas daí ao vigário lhe cobrar postura, já vai longa a distância. E foi o que aconteceu num dominguito chovedor.
A capela, prum dia de água que Deus mandava, estava meio entupidota. Todas as carolas da vila sentavam as bundas nos bancos. E os maridos, bem, os maridos serviam pra dobrar a conta e pra, entre um Pai nosso e uma Ave Maria, olharem, num revesgueio discreto, bundas e bancos. Pra fechar a soma, mais uns gatos pingados feito o desconfiado de que lhes falo. E desconfiado não era pra menos, considerando os tombos que a vida lhe entregou, mais tinha que olhar pra todos os cantos, vai saber o que pode cair na cachola de um homem de buena fé, assim era o que dizia todo tempo e o tempo todo reafirmava para si mesmo que olhar pra cima e fugir de olhos humanos era questão de sobrevivência.
Mas o fato é que o vigário na saída da missa domingueira sempre se postava diante da porta lindaça que guardava a capela – porta essa feita a preceito, mandada vir da Capital às custas de um fazendeiro local que ia morto há muito tempo e enterrado lá no quintal da igrejinha. Nosso homem vinha saindo e preparando o palheiro já previamente enrolado pra explosão do isqueiro abastecido a querosene quando o Vigário, estendendo-lhe a mão, e pro canto o chamou.
“Mas Chê, filho de Deus!” falou o vigário com a mansidão de quem afia a faca no momento antecedente à sangria do porco. “Nunca te vi contribuir com um pilinha sequer pras obras do Nosso Senhor”. Nosso gajo recolheu a mão que segurara a do padre, mascou o cigarro com o canto do beiço e explodiu a labareda no toco. Deu aquela tragada profunda, bagana bem presa nos cinco dedos da mão, olho no chão, pensou por instantes e lascou: A vida tá dura caro vigário, a vida tá dura. Não me tem sobrado um cobre sequer pra dividir com o Salvador. Sobrasse algum, talvez nem assim o dividiria, iria eu amansar os roncos que sobem do estômago. E voltou a sugar profundamente o toco que ardia protegido na cunha das mãos no meio do chuvaréo. A luz que não tinha nos olhos, sobrava na palma da mão que protegia a bituca em brasa vermelha e com todo o despudor desnudava calos e talhos.
“Mas Chê, filho meu, a caridade engrandece o homem, e os pecados dos dias falecem todinhos no óbolo e na doação”. “Deus dá, Deus do alto do céu nos manda coisas e lições”, seguiu o Padre perorando sobre o divino e seus mandados e mandamentos. Nosso homem, é bem verdade, a tudo ouvia com muita atenção. Pois é Padre, é bem verdade que o Nosso Senhor manda coisas lá de cima. Joga tudo aqui pra baixo, dá pra todos o merecido, lá do céu caem coisas e aos sotretas como eu, que não nasci desconfiado, restou ser o que sou na imensidão do que não tenho. De mim eu cuido, e vejo que o seu Deus cuida dos outros. Mas sabe Padre, não descreio do Nosso Senhor, e tanto não que aqui venho quase todos os domingos pra lhe dirigir palavras e pensamentos, nunca pra lhe pedir coisas, ou matéria ou dinheiro. É mais um jeito de olhar pra cima, e finco o olho feito tartaruga de algibe, que cuida o lado onde cai o balde, pra não se ver arrebentada.
O Vigário, atento ao fado, ouviu pra depois perguntar: “mas em ninguém confias?” Chê cristão? Confiar?, não confio, pois se confiasse, com certeza já tinha partido desta pra outra. Se erro? Mas claro que sim! Pensa aí, meu caro Vigário, na próxima missa conversa com o povo sobre a função do erro na sobrevivência da humanidade.