Não era homem de negar estribo. Sempre que demandado, estava disponível a todos e para todas as questões. Fossem velhos, moços, moças, crianças, estava ali para construir, não cansava de afirmar. No canto do galo, já tava com o mate cevado e a cepa de espinilho em brasa. Apreciava uma cabeça de ovelha bem assada pra refeição da manhã. Buenas, tinha aprendido com a Dona Ilca: miolos de ovelha remexidos com ovo de galinha era iguaria, e de fato era.
Não tinha erro as cenas que sempre se repetiam todas as manhãs naquele galpão pobre instalado ali no fundo da Vila Caddie. Pedaço de terra de uns dois por dois grudado numa casinha de latão e madeira-de-construção com não mais que uns seis por seis. O galpãozito era guarnecido por recuerdos trazidos de campanha, piolas dependuradas, sogas estruturando o oitão e trastes dados pela existência no curso da andança. No vértice da rústica construção, virado pro norte, uma armação feita a preceito na base de madeira escolhida a capricho, sustentava livros, que afirmava pra quem quisesse ouvir, eram razão e motivos pra sobrevivência nessa terra de gente maula e vazia. Fazia vizinhança com o buraco 2. Sim, se havia arranchado às margens de um clube de gente cola-fina, onde se joga o golfe.
Quando a lida do campo cessou, e lá se vão uns 25 anos, não teve jeito, juntou os apetrechos e se mandou pra Capital. Tinha ouvido falar no Seu Eduardo, índio muito do brabo, com hábito de mando, queria na sola da bota tudo e todos; dono de um coração do tamanho do mundo, a todos acolhia e, por isso, fez fama entre os vindos do Oeste que se haviam perdido nas Capital. Procura o Seu Eduardo, diziam os que ainda não haviam sido enxotados de Boa Ventura. Não resolvia tudo, mas pelo menos um poso garantia. T..t..a te a..a..aarrancha ô bosta, de…depois ve…ve..vemos o q qfazer. Era gago, custava descarnar a palavra, mas a palavra dita era a palavra cumprida.
E fui ficando por ali, num canto do ranchito da Dona Cristina, garantido pela influência do Seu Eduardo. Tratava-se de uma senhora que da vila tudo sabia e a todos auxiliava. Mas não tinha o fato, do presente ou do passado, que por lá se assucedesse que dela fugisse ao domínio, por mínimo que fosse. Era famosa pela ambrosia que fazia e pela língua ferina que disparava mais ligeira que coice de porco. Em termos de estirpe, sabia a de todos, no mínimo até a terceira geração. Se tinha coisa que todos estavam alertas, era que naquela quadra deveriam ter cuidado. Não vá inticar com a véia, todos diziam, se gosta, entrega as calças, mas se não gosta, a la pucha, é rolo certo.
Seu Eduardo, que a todos acolhia, mandou que eu fosse ficando num quartinho escondido no fundo da casa. Era da filha que havia partido havia tempos para os estudos pros lados gringos. Me cobrou 20 pilas por semana, com direito a vianda, e já foi sentenciando, “é por quatro semanas, depois vai achar um chão pra ti. Corre na volta que lugar tem.” Pra quem tivesse qualquer precisão, lá estava ela, dia e noite, especialmente, se as necessidades fossem na ordem da saúde e da sofreguidão. Ficava com o desvalido até a morte se fosse, e o tempo todo falava do Oeste de onde veio e cantava a saudade gaviona que cultivava das relações que por lá ficaram. A véia era muito bem quista e muito requisitada.
Foi durante a construção do ranchito, enquanto juntava bolinhas de golfe e atendia chamados ansiosos perseguindo as perdidas, que tomou contato com aquela lida, estranha no começo, mas aos poucos, entre um descanso e outro, ao observar os rituais que os praticantes performavam antes de cada tacada, acabou garrando gosto por aquelas manhas que arrancavam daqueles locos e locas urros de vitória e berros de frustração.
Num dia meio anuviado, um almofadinha alinhado como potro pra exposição, perseguindo uma bola perdida, deu de cara com nosso homem. “Bom dia, disse o cola-fina”, era temprano nomais. Buenos dias, respondeu Seu Hescremêncio, é como se chama o nosso homem. O que lhe traz pros lados de cá da cerca? Questionou gentil ao almofadinha. Conversa vem e conversa vai, encontrado o objeto do desejo do gajo, terminou por consultar se Hescremêncio toparia carregar sua bolsa, cheia de paus e ferros, em troca de 20 pilas. Mas como não! Resposta pronta, direta e necessária, afinal era uma semana de aluguel que tava garantida. Mas não entendo nada da lida, já foi avisando. “Sem problemas, aos poucos lhe conto, basta, por ora, carregar os tacos e não tirar o olho da bola, o resto, deixa comigo.” E assim andou e assim já se vão 25 anos que a sobrevivência vem daquela nova atividade. Hescremêncio virou caddie, e dos mais requisitados.
Hescremêncio era diferenciado, tratava de todos os assuntos, discorria por todos os temas, especialmente os relacionados às tramas do povo gaúcho, mas não conseguia se amansar com o folclore e muito menos com a dança do pezinho. Naquele lugar entupido de capitalistas, Hescremêncio se fazia respeitado com homem de esquerda que não tinha pejos para se afirmar politicamente. Não fazia diferença nas bolsas que iria carregar, afinal é só uma função que assegura o ganha pão. Não misturava as coisas e não permitia que alguns liberalóides, era assim que os batizou, aqueles homens e mulheres que falavam muitas bobagens sobre a economia do nosso país, falavam mal do Estado, mas nas suas empresas viviam à custa de favores estatais e de relações nem tão bem explicadas com certos políticos. Tinha pavor da moral de cuecas fincadas por aquele tipo de gente que sentava a lenha em tudo e em todos, e nas praças chiques, amassavam suas Le Creusset em panelaços históricos, mas não assinavam a carteira de trabalho das suas empregadas domésticas e nem os impostos pagavam direito, iam coimando o que bem podiam, e se davam o luxo de cagarem regras e condutas.
Nalguns metia confiança pra desenvolver a prosa enquanto caminhavam entre um buraco e outro, passado o jogo, matutava consigo mesmo: como é bom aprender com gente que pensa diferente da gente, basta conteúdo e boa fé e aprendemos todos e crescemos todos, e todos, amanhã ou depois, poderão voltar pra suas Boa Venturas. Pros liberalóides, se bem de pilas, negava estribo e preferia se quedar na vila lendo um bom livro. Se faltavam os cobres, bem, tampa o nariz, toma uma infusão de carqueja e faz a lida. Era convicto da qualidade do seu trabalho, passa rolo e volta rolo e aqueles a quem desprezava, e que sabiam serem desprezados, especialmente quando tinha taça em jogo, vinham pedir e oferecer boa paga para que carregasse seus apetrechos e distribuísse seus conhecimentos sobre o jogo escocês. Carregava, orientava no campo, mas não trocava uma ideia sequer. Era tipo filosofia de vida: tem gente que trocada por lata de merda, se perde a lata, e vida que segue. Por vezes pensava consigo: e se a lata fosse Le Creuset?, e se ria solito.
Com a mesma astúcia que conhecia os greens e os regimes de vento correndo sobre a copa das árvores, tratava dos clássicos da economia, da política e da poesia. Orientava o jogador com certa grossura, mas cheio de educação. A bosta do green tá recebendo bem, joga no pau; mas dexa passá, dexa passá, ma que merda, dizia ao novato que segurava o taco quando do contato com a bola que lá se ia perdendo pra direita no meio do mato ou na direção do shopping; ma que bem de bolso, hein!, e depois do riso contido lascava certeiro, dando comida pra caddie?, era o aviso de bola na água, logo a noite a romaria de caddies e de gurizadas perscrutariam as funduras dos lagos empanturradas de bolinhas deixadas como forma de repartição da renda; seu dotor…, seu dotor…, este é um esporte de burguês, e o senhor já viu burguês fazer força?, passa leve, e a mão direita procura o seu ombro esquerdo, orientava. Era a repreensão sadia ao golfista iniciante quando este batia na bola como quem desce um machado pra rachar uma tora de lenha. Se a escolha do golfista, nas meditações próprias do tee, fosse contrária à sua, logo se afastava e dizia,
“não sei pr’onde vou, sei que não vou por aí”. Buenas, quem decide é quem joga, e colhida a bola por ventos antevistos pela experiência e por Hescremêncio, lá se ia cravada na banca de areia. Aproximava-se e, no ouvido do sabidão, sussurrava: José Régio, Cântico Negro; juntava a bolsa com olhos fixos no ovo estalado fincado na banca, já pensando em solução a preceito. Abre a cara do taco, abre a cara, orre bosta, abre e passa. Seguida a instrução, lá tava a bola no green pronta pra mais um parzito a ser salvo na luta entre o homem e o campo. Antes da opinião, como tudo na vida, estudava bem as caídas homiziadas no tapete traiçoeiro, verificava as pontas da grama que giram encarando o sol, e calculava a velocidade a ser dada no patter, e somente depois de toda liturgia para a mais completa compreensão sobre aquele pedaço de campo, opinava. Sim, no green, o caddie é o senhor. Seja rico, pobre, doutor ou o que quer que seja, porque o que tem de pinta que parece mas não é, no momento definidor, o domínio é do caddie. Tá correndo, dois dedos na direita. O som rouco da bola rodando no buraco, é único, só o sabe quem já o amansou na luta entre campo e homem.
A verdade é que se queres conhecer alguém, basta observá-lo num campo de golfe. É um esporte mui duro. Não pelas qualidades técnicas que exige do golfista, mas porque tem a capacidade de pelar o vivente, desnudá-lo completamente diante de todos e de qualquer um disposto a vê-lo como é.
E foi que um desses bostinhas criado a pão de ló e dengos de mamãe e pagando jabá pra colunista social, não se satisfez com a recusa que Hescremêncio lhe fez. Seria pra carregar a bolsa num campeonato importante, e o gajo, mesmo sendo o merda que era, jogava bem e se constituía em pretendente sério ao troféu que ainda não tinha. Mandou emissários e boas ofertas, é de se reconhecer, mas nada mudava a postura definida de Hescremêncio. Não deu desculpas e nem voltas, simplesmente mandou dizer que praquele tipo de gente ele não trabalharia. E foi que pelas cinco da tarde, o bostinha mimado que sempre teve tudo o que quis à custa de plata e influências do Pai, botou a cara na janela do galpãozito onde Hescremêncio mateava e lia “O homem que amava os cachorros”. Óculos na ponta do nariz, se limitou a levantar as pálpebras para murmurar, o que foi? “Quero saber o porquê não queres trabalhar pra mim? Pago bem e preciso dos teus serviços.” Atrevido este tipinho. Hescremêncio lia exatamente a parte em que Diego Rivera se metera num enrosco com Trotsky por causa da Frida Khalo. Já mandei dizer que não, e dito o não, não é que é, e buenas tardes, tô ocupado. “Mas pelo menos uma razão tens que me dar”, e lascou alguns senão eu faço e aconteço, eu mato e arrebento, bem no feitio daquele tipo de gente que Hescremêncio deplorava.
Chê, vou te dizer o seguinte, e faz o que tu bem entender, ô guri de merda. De mansito, se levantou, foi à prateleira e pegou o velho Martin Fierro que descansava sobre um livreto de regras de golfe. Folhou pra lá, folhou pra cá, e antes de ler o pedaço eleito pra prosa, afirmou simples: seu moço, sou culto e grosso e aprendi a diferença entre quem presta e quem não presta, portanto, “Lleváte de mi consejo, fijáte bien en lo que hablo: el diablo sabe por diablo pero más sabe por viejo”. Sentou-se, fez roncar o mate, e encerrou a conversa olhando no fundo do olho do gurizote que não acreditava no que havia ouvido. A vida, meu caro, é como no golfe, se fores errar, que erre sempre à esquerda, pelo menos ainda estarás dentro do campo e alguma saída encontrarás, arrumou o óculos e seguiu sorvendo Padura.