Lá pelas bandas do chovedor, vem filosofia, política, sentido de não fronteira e nuvens encarnadas de sangue guerreiro e latino-americano. De quando em vez, um alaranjado brilhante misturado com o gris esbranquiçado revoluciona as vistas e convida o pensamento. Mas não queira ver o céu armado lá pras bandas do Uruguai, pelo menos é o que diz a canção, e é certo, como certo está o cancioneiro marcado pelo vaguear del gaucho neste pedaço de mundo, que o castelhano tem a certeza de que latino-americano é; uns viventes deste torrão pampeiro pensam que são ingleses, outros, mui próximos, não têm a menor ideia do que são. Pois bem, pensamento convidado, o mate bem cevado pode desencadear as úteis discussões e polêmicas.
Tá bem e muito bem está. Eis que volto para o mundo deixado sei lá faz quanto, e quanto do que deixei pra trás me espera de volta neste naco de chão? Me arranchei em tantos e tantos lugares. Sim, fiz vida por muitos cantos deste mundo que um dia haverá de ser bom e generoso com nossotros humanos. Encontrei tantas vertentes e tantas gentes e li tantos livros e estudei tantas coisas e charlei nas mais variadas línguas e aqui, já pelo fim da vida volto pro adobe socado, pro capim santa-fé, pro pasto seco, pro mugido da vaca, pro berro do touro, pro canto do galo prenunciando mais uma aurora e mais um duro dia de trabalho dentre os tantos que compõe a existência neste pedaço enrugado de terras e distâncias. Volto pra agregação fronteiriça que explora gentes e lhes conta histórias entregando-lhes mentiras e causos de monarcas, e de reis de desertos verdes, e gaúchos e mais gaúchos… sim, gaúchos a pé e a cavalo, sim, sem cetro ou propriedade ou dignidade que não sejam as das estórias definidas e votadas para bem ornamentar as caminhadas dos desavisados que se foram, ou dos que foram idos, para bem se chocarem com a realidade crua dos cantos de cidade, dos arrabaldes pobres e fedorentos criados por nós nas grandes cidades e nas changas que hoje em dia inda existem, e existem de um jeito diferente, pois vem nutridas pela pretensão sincera de dar a boia às panças pra retirar as proles da fome e da putaria. Mui cedo me fui daqui! Mui cedo, nem bem sei a quantas que me fui. Me fui mui cedo, é fato. Talvez por isso o atavismo, uma certa compreensão do lugar donde parti e a convicção de que quem muito escuta, de um jeito ou de outro, acaba por se ilustrar. Muito ouvi, é fato!
Mas que chegada! Minha cabeça vem retovada de esperanças e querenças. Assim que entrar no rancho, vou ouvir boa música. Preciso de um mate castelhano, refletir é o que preciso. Mas Chê, o que é que vai me fazer descansar a cabeça? As coisas estão se embaralhando de um jeito que não me agrada. Estruturo ganhos e perdas e percebo que a vida não é feita dessa contabilidade maldita; a vida é conta de loucuras e racionalidades. A vida não é para quem vive como crista de peru, molenga que se atira pra todo lado ao sabor do movimento ou do mando.
O vento batia inclemente, o barbicacho sofria pra segurar o pança-de-burro enterrado na cabeça; meu andar vinha desolado e errante. Veio a frase ouvida de um certo Doutor no dia em que me enrabichei numa prenda, que nem bem me vem o nome, mas que queria fazer misérias pelo amor daquela china e, firme e franco, me disse: “te acalma guri, sentimento não se mede a palmo!” Mas é isso que se está passando, é o sentimento batendo lá no fundão da mente, e o sentimento, quando chega, não toma por referência razões ou boas maneiras.
Mirei pros lados do cerro que, olhando daqui, se apontava como uma ruga no horizonte perdido pra minha direita, e segui firmezito. O passo era curto de quem vaga com o único desejo de se ir ao longe. O frio cortava o pensamento, “caramba, faz frio neste tal de mês de agosto” – foi o verso do poeta na Morte de Pedro Ninguém e, puta, que razão tinha o trovador – e o suor que vertia da testa prenunciava um devenir incerto e iminente. Segui e não dei vau a esculhambação que se fazia na minha mente. Um mate acalmaria a alma, o amargo, castelhano em pura folha, e abrandaria o coração.
Dos aprendizados que só o tempo traz, digo que fui criado – sim criado é a palavra – entre gente culta, entremeando campo e cidade e livros e música e arte e gente de todos os naipes. Verdade seja dita: é bem bom ter um livro pra ser comido lá debaixo do cinamomo.
O saber do mundo se espraiava com gosto e prazer. As lições eram bem-vindas do lado que viessem, desde clássicos literários passando pelas mandingas da Nega Jônia, as rezas do Nego Jango e as benzeduras do Benja. Pelos velhos e novos que se juntavam na volta do mate, a troca, a la farta, de todo tipo de ideia enchia as noites das reuniões com gente e sempre mais gente. Se digo que fui alimentado para sobreviver, falo de certo estudo, de serviços que fiz, e de troços que até os dias de hoje tenho curiosidade em saber para seguir bem alimentado e sobrevivendo. De lá, a la pucha, trago riscado na mente os entardeceres. E importa que lhes diga, esse foi o alimento que me deu as únicas coisas que nunca me tiraram e que nunca me vão furtar, o gosto por gente e o sabor do saber. A comida que entra na pela boca nada mais faz do que ajudar o corpo, é certo. Mas menos certo não é que a canjica ou los chinchulines comidos na noite, na manhazita briguenta já vertem em bosta e em bosta se vão.
Se é sangue ou convivência, sei lá eu pra clavar. É fato que me preparei pra aguentar o repuxo. Joguei o osso e clavou suerte. Puta, a la fresca, tivesse dado culo? Mas não deu!
O minuano me come a vida, mas não desisto. O semblante do rancho, depois de lá sei eu que tempo, já dá sinal pra vista. Igualzito… igualzito. Meio desbocado aqui e ali, mas no cerne, bem no cerne, em pé, tal qual eu na retomada de mais esta quadra da vida. O santa-fé firme, as taquaras à mostra, o barro inda duro como pau de burro-hechor sustentavam e protegiam o pouco que ainda deveria existir lá por dentro. A coisa é simples. Quando simples é a coisa, a eternidade que se cuide, pensei cá comigo e com os buracos do meu poncho.
A simples vista do rancho trouxe o som imaginário de um concerto sinfônico combinado com grandiloquência e simplicidade e com todas as emoções que andam calculadas pelos compassos da boa composição. O silêncio organiza o ouvido, e os nacos de quietude, à medida que são encurtados ou espichados, vão formando melodias e pintando os céus e as mentes. A música nada mais é do que medidas de silêncio, simples, não?
Definitivamente, preciso chegar. Cheguei. A necessidade do amargo castelhano, do banco de três pernas no canto do galpão, das gentes que não vejo e das gentes que, mesmo querendo vê-las, por mais que assim o deseje e queira, sobraram só riscos nas retinas e as sombras dos seus semblantes. Se essas gentes inda existem ou se existiram mesmo, sabe-se lá? As horas e os dias e as semanas e sei lá o quanto, somente o tempo haverá de dizer.
“Sentimento não se mede a palmo”, dizia o Doutor. O rangido da porta choramingou matreiro, desconfiada como o redomão convidando pro campo, mui ressabiada pelos sofrimentos da doma, se entreabriu. Desconfiada entre o peso das lonjuras e a leveza da carícia sincera, cedeu o passo. O rangido soou lento como mugido angustiado vertendo de um fundão de campo em noite estrelada.
O velho guabiju ficou pra minha esquerda. Eu trazia a noção de que era grande como realmente o é. Por debaixo, pintadas pelas estrias do sol que aquelas horas se ia jazendo nas carícias do horizonte, folhas mortas vagueavam num surungo faceirote.
A chegada de alguém neste lugar, onde há muito alguém não chega, é como se um ninguém, por uma ou outra cossita, ali estivesse presente e ausente, e tudo ao modo do Finado Trançudo, num grande paradoxo geral. Um banco galponeiro rengo, recostado na chegada das casas, segurava o tempo enquanto os moirões comidos pela passagem das luas, das chuvas, dos ventos e das almas, resistiam, habitavam e amparavam tramas e arames que, débeis, inda marcavam as pequenas fronteiras naqueles naco de chão.
O berro da porta bateu firme na alma tal qual canto de tristura em acordes de buenas noches e se arranche.