Ricardo Giuliani

NO CREO EM BRUJAS, PERO QUE LAS HAY, LAS HAY

“Chê Tibúrcio, prepara o mate!” A voz forte de Querêncio, capataz do piquete Os Domadores da Ventania, soou forte do canto do galpão estruturado à base de cedrinho vagabundo que ano após ano era cedido pelo Miguel, dono de umas ferragens que se espalham pela cidade. Durante o mês de setembro, perguntado fosse, se intitulava o “dono das “barraca”. Por essa e por outras generosidades, Miguel era o vitalício Patrão daquele Piquete que juntava todo naipe de gente.

“Onde tem capataz peão não se governa!”, com a voz arrastada garganteava Querêncio a todo tempo, revesgueando o olho pro Seu Miguel, de quem era funcionário numa das Barraca. Naqueles 30 dias a ordem social transmudava completamente e funcionava a preceito. Gente que na vida vivida não seguia regra ou obedecia a ordens, durante aqueles dias lamacentos e chuvosos, eram a mais fina flor da obediência desde a exatidão de conduta. Ali, cabo virava general, e general, bem, general é sempre general. Nalguns períodos do ano, e faziam os maiores esforços para que fosse pelo menos uma vez por mês, se juntavam pra costela gorda e pro truco que já chegava bem arredondado pela canha que alguém trazia de Santo Antônio.

“Truco! Fia da puta! Truco!”, repetiu mais alto o Asquerenciano. No fundo, se ouvia “adeus querência” que soava de uma rádio FM lá de Caxias do Sul, pudera, terra de gringos italianos, mas lindaça e fiel como bota lustrada a graxa de porco. “Truco chambão!” Seu Miguel olhou pra primeira carta posta na mesa, um quatro de bastos de merda, e repassou a vista nos cinco que rodeavam a mesa. Jogavam de seis, e essa volta era de mano, e todos se aquietavam acovardados pelo tamanho do grito. Dois tentos separavam o caos e a glória. Se afeiçoava uma rodada pra cada lado. Jogavam a que daria fundamento e conversa pra mais de mês.

“E pro primeiro?, não sai nada?” Olhos gachos, falou de mansito e, contendo a ansiedade escondida no peito dos que armam arapucas, bicou a canha. “Mas Chê, até que temo” – falou o mão daquela de mano – “e temo e te escuito”. “Se botá, levo pra carculá os meu empardado”. Orelhou as cartas que jaziam bem apertadas e seguras entre dedos grossos e disformes e calejados pelas lidas pesadas no dia a dia da construção civil, e fez juízo confirmatório. “Esse estrupício tá me pescando”, matutou Miguel. Orelhou as cartas na ponta das unhas como quem marca o espadão, e conferiu novamente os 32 que se arrumavam pro combate. “Buenas, chambão, invido bosta!” O berro foi grande! Nem bem o bosta havia ecoado e um “Quero” retumbante rolou do peito de Asquerenciano! E todos voltaram os olhares pra mesa protegida pelo feltro verde comprado a capricho pro exercício dos rituais do truco. “Quero! E canta aí!”

“32! 32 só pra primeira”, e largando a mansidão de lado, engrossou Miguel com ares de patrão de piquete. Asquerenciano, peão de obra, se recostou com ares de dono de bolicho, fez beiço de comissário, adoçou a goela co’a branca e mansamente mandou notícias: “32!” Falou baixinho, e repetiu mais baixo ainda, “32”. “Mas Chê, 32, e te levo de mão!” Postou os antebraços sobre a mesa e olho no olho, depois de ter recolutado memórias de vida, entregou o dito: “yo no creo em brujas, pero que las hay, las hay”.

Passou a mão nos dois tentos que faltavam pra fechar a rodada, fez a volta nos cinco que o acompanhavam no truco da vida, juntou o toro, a marca da virada, se levantou com intento de partir na direção de Tibúrcio pro mate que já vinha cevado há tempos. “Chê Seu Miguel, por vezes, e poucas vezes é certo, chega o dia do peão”, e jogou na mesa um cinco e um sete de copas amadrinhados por um quatro de bastos que solerte deitado à mesa a tudo assistia em silêncio.

 

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