E o homem andou e andou e andou correndo à margem do rio. Caminhava e com toda a atenção do universo olhava pra todos os cantos, espiava pros lados, esticava o pescoço, parecia querer trazer pra vista lugares que nunca estiveram à mostra. Se lhe agradasse determinado ponto d’água, entrava a passos largos e ligeiros e, logo que a água batia no peito, voltava contrariado, com cara de emburrado para imediatamente se sentar sobre o terreno que fosse e refletir.
“Que se passa?” Perguntava a mulher, parceira de todas as caminhadas e aventuras. Por vezes, é bom cultivar o silêncio e, se tivermos sorte, mais tarde algo haverá de florescer, e se voltava para si mesmo.
Estes caminhos foram trilhados por muitos quilômetros de rio durante semanas a fio. A procura era incansável e dedicada.
Por essas bandas, já correram charruas, pica-paus, maragatos e chimangos, muito gado foi arriado deste lado do rio pro lado de lá, e de lá, bah!, nem se fale, muita rês cruzou a nado pros ranchos desta campanha. E nem lhe falo nos chibos feitos todas as noites inda nos dias de hoje. Não tem pão em mesas fronteiriças que não traga a farinha castelhana. Mas bem, melhor cruzar o rio quando dá vau do que pagar a coima que os guardas de aduana achacam até em cima de saco de gajeta. E, assim, corriam as conversas durante as expedições empreendidas com todo zelo e denodo.
Sobe rio, desce rio, sempre na companhia da dedicada esposa. Foi num desses dias que parou no que conheciam como pesqueiro dos padres. Ali montou acampamento e informou à esposa que trouxera vianda e apetrechos pra pescaria da noite. “E dormiríamos onde?” Foi a pergunta com tom irônico. Prontamente, a resposta irônica deu conta de que “não dormiríamos!” e, em arremate e com a tranquilidade dos justos, completou a notícia dizendo-lhe que a noite seria de pesca e de observação. Vais ver que neste pesqueiro, onde muito me diverti na infância, a noite é bem diferente e o que me marcou a existência nas pescarias de guri pode também marcar a sobrevivência.
Depois de ajeitar um caniço, cortado do taquaral descansado há décadas às margens do pesqueiro, se acomodou num lajeado próximo e, enquanto pegava um bom punhado de lambaris enganados a miolo de pão e anzol tipo mosca, perdia o olhar nas entranhas daquele flúmen mansito. A noite chegava sob anúncios dos mantos grenás que caracterizam os entardeceres na campanha reboleados por azul e cinza esmaecido.
Tudo ajeitado, lambaris iscados pelo lombo em anzóis de polegada e as linhas postas n’água. Pra cada linha, correspondia uma forquilhazinha, colhida ali mesmo no entorno, para, na ponta, grudada por um nozito de tope, se prender uma sinetinha que traz a função de denunciar fisgadas e movimentos que ocorrem no obscuro das funduras barrentas. Assim fez com as dez. A cada linha, uma garrafa vazia de cirilinha já meio esverdeadas de tanto cuidarem da organização das cordas. A noite ia caindo, e a sombra do arvoredo antecipava a negritude da noite. As boias, fabricadas à base de rolhas que antes cuidavam da canha, aos poucos, sumiam consumidas pela fome do rio.
Lá pelas tantas, Chiquito se foi ao auto pra buscar um pedaço carnudo de costela ensanguentada. Deslocou-se uns 30 metros do lugar onde estavam, grudou a costela na piola e a jogou pra dentro o rio. Mexeu, puxou, recolheu. Bom, muito bom, murmurava pra si. E nisso a esposa o mirava e se perguntava se tudo corria bem e o que correria pela cabeça do Chiquito. Observava o ritual do joga a piola, recolhe a piola, olha e repete, bom… muito bom, e voltava jogar a piola co’a aquela costela que ia e voltava inteiraça nomais.
Desfeito o ritual, Chiquito se foi ao mato e voltou com toras de espinilho e alguns espetos bem firmes, presentes do taquaral de que lhe falei. Vou preparar esta costela pra comemorar nosso achado, falou o homem com ar circunspecto de guri que acaba de fazer arte. Por certo, com água boa trazida de casa, lavou bem a costela antes afogada e re-afogada nas águas barrentas daquele rio que não trazia preocupações outras que não fosse se amansar nos afagos do grande Uruguai.
Feito o buraco de não mais que meio palmo, organizadas as pedras para proteção da brasa, espetada a costela já limpa, convidou a mulher para a beira do fogo, afinal já corria um ventinho insistente temperado de frio. Abancaram-se sobre uns três pernas também trazido do povo e, na mãnha, empezaram conversas de casal que bem vive e bem se constrói. Nos pensamentos da esposa, a cena da costela jogada e recolhida do rio vagueavam buscando razão. Toda vez que fixava o olho nos ossos e na carne assando no vagar medido das brasas de espinilho, marcava um bom… muito bom.
Pelas tantas, Chiquito murmurou como se estivesse solito: se o Narobosto ganhar essa eleição, tamo fodido, fodido mesmo! E foi aí que tomou coragem pra mirar no fundo do olho da esposa pra pergunta que vinha cevada fazia tempos, mas não juntava coragem para botá-la na existência, afinal, dentre as coisas que não tem volta, a palavra lançada vem dentre elas. Me diz o seguinte, Medora: se tivermos que abandonar tudo e cruzar este naco de água rumo ao incerto e ao não sabido, deixando tudo pra trás, tu vai comigo?
Medora era mulher culta e bem-informada, não vivia à custa do marido ou de quem quer que fosse, tratava bem dos seus afazeres e independente que era não dependia de homem para fazer a vida. Não se metia em política, isso é verdade. Ao contrário de Chiquito, que tinha sempre muitas requisições para opinar sobre as mazelas do seu povo. Ocorre que as coisas na política vinham tomando um rumo que ninguém nas bandas de Boa Ventura imaginava possível. Um tal de Narobosto, ex-milico metido a general, se apresentava como o salvador da existência. O cérebro era de passarinho, a língua, de serpente peçonhenta, os olhos, bem, os olhos eram emoldurados por vermelhidão alimentada por ódio e hipocrisia. Mas isso tudo não seria problema, nada que um mango bem curtido não pudesse resolver ao modo das soluções dos antigos.
Sucede que a massa ignara, e a nem tão ignara assim, se havia apaixonado pelo discurso néscio e de ódio que lhes adoçava os ouvidos e pouco a pouco ia amalgamando a massa como corrente política. Essas pessoas passaram a se reunir e a se organizar e se enaltecer, com toda a sinceridade e pureza, como a única solução possível praquele torrão de terras que, é fato, vinha muito mal na mão dos seus políticos. É certo que o furúnculo estava prestes a explodir, e o carnegão, ao que tudo indicava, era horrendo e metia medo a quem minimamente acuiera as ideias.
A verdade é que Chiquito era dos poucos que se levantavam contra aquele estado de coisas e os combatia de peito aberto dando todas as opiniões que lhe pediam. Chiquito era dono de um discurso ácido e pontiagudo. Batia no cerne do problema, e amante da sinceridade, não se reservava em dar fundamento ao pensamento, e isso começava a incomodar aquela turba, a cada dia mais fanática e sem limites. Já ouvia falar, a boca pequena, das agressões físicas que os opositores do Narobolso vinham sofrendo. Seus homens e suas mulheres traziam consigo um postulado moral e exigiam que todos a eles se perfilassem e aderissem. Era o velho: não tá comigo, tá contra mim!
Mas buenas, para encurtar o conto, Medora perguntou o porquê do questionamento e já foi arrematando que com ele enfrentaria qualquer surungo, afinal de contas a vida que tanto quiseram juntos não poderia e não vai ficar pela metade.
Precisava saber os motivos do Chiquito e voltou a questioná-lo, por quê Chiquito? O que se passa? E Chiquito fez todas as ponderações e leituras políticas acerca do que poderia se assuceder com a eleição de Narobosto e acerca da ascensão daquela gente ao poder político local.
Nós comunas, e riu às barrigadas, fazia tempos que Medora não o via rir com a naturalidade das crianças. Nós comunas, continuou, não teremos vez num lugar dominado por gente que come ódio e caga vingança. O povo tá sofrido, Medora, o povo anda cego com este tipo de gente. Não temos como ficar por cá. Precisaremos deitar o cabelo e refazer a vida, ou pelo menos, baixou os olhos pras brasas, vista triste, manter a vida, Medora, manter a vida, é isso que precisamos nesta quadra da existência. Nem bem terminada a fala, Medora lascou um tô contigo até o fim do mundo ou dos tempos.
Mas me diz o seguinte, e esse troço da costela jogada na água, caminhadas pelo rio e esta noite no pesqueiro?
Chiquito se levantou dirigindo os olhos à negritude do rio e apontou na direção de algo que àquelas horas não se podia ver. Ali, tá vendo ali? Ali passa um lageado, de fora a fora, se vai de Boa Ventura aos lados dos castelhanos. Ali passamos com a água pela canela. Se o Narobosto ganhar, nem tempo de fugir a nado teremos. Precisaremos correr pra escapar da horda de fanáticos que seguirão em perseguição imediata e cruel a todos que deles pensem diferente. Mas e a costela, insistiu Medora, o que foi aquilo de joga e recolhe de recolhe e joga?
Medora, que adianta fugir de tubarão pra sucumbir às palometas. Bem sabes, o tubarão é vistoso e grande e com distância já podes te prevenir. Quando o bicho vem, de longe já vê a barbatana saliente cortando a água e apontando a direção. Já as palometas, carniceiras traiçoeiras, pequenotas que sabem que são, se juntam em bando e em bando derrubam qualquer naco de carne, de bicho ou de gente. É bicho mui do chinelão e covarde, só ataca vítima ferida e enfraquecida.
Já dizia Martin Fierro, El primer cuidao del hombre es defender el pellejo. E así haremos. Queria me prevenir, e fiquemos tranquilitos nomais, palometa por aqui, neste passo de rio, no aí. E bota na cabeça, minha querida Medora, se nós vamos, é porque ali na frente, vivos, poderemos voltar e, se por ora perdermos, é porque sabemos a diferença que hay entre esses bichos, e se nos recolhemos é porque posso até perder pra tubarão, mas nunca e jamais pra palometas sotretas.