Ricardo Giuliani

CAMPEANDO FIO D’ÁGUA

Ô de casa! Ô de casa! e alguns plaf, plaf, plaf, foi o que ouvi lá do fundo do pátio.

Buenas, sou Hescremêncio, o dono da casa, se aprocheguem! 

Três eram os xirus que se apresentavam em nome da firma que ontontem chamei pra ver uns problemas assucedidos nos canos de casa. Sei lá por qual razão do inferno, minha conta de água apareceu umas dez vezes mais gorda do que normalmente aparece. Vasculhei por todos os cantos, arrastei móveis e fiz mandingas, e nada, nenhuma gota d’água vertia por qualquer canto que me parecesse visível. Tive vontade de chamar benzedura, mas a Nega Jônia se quedou nas bandas do arranca-toco e mui véia que já andava não quis arriscar a encomenda e muito menos a viagem.

Desde logo, notei que, em comum, os xirus tinham era o jaleco com o nome da firma. No mais, um vestia bombacha balão, o outro, uma do tipo castelhada, e o mais entojado vinha metido num culote daqueles que tu não sabe onde termina a bota onde começa o pano. Buenas, o que pensei de vereda é que o do culote devia ser o chefe, só podia, co’aquele peito de pombão e nariz apontando pro horizonte, chefe não fosse, a pose, ah!, a pose trazia.

Me chamou a atenção os lenços de cada um. O da bombacha balão, com a bota beeem sanfonada, por debaixo do jaleco deixava transparecer o nó de domador ou maragato, quadrado e vistoso saltando pra fora da gola da camisa de panuelo branco. O da bombacha castelhana, arrastando meio metro de barba nas alpercatas comidas pelo uso, compradas, ao que parece, pelos lados de Artigas, vestia lenço branco atado no molde tipo ginete, aquele que fica a dobra prum lado e as duas pontas pro outro. Bem, o do culote não sei se usava lenço ou gravata, o jaleco vinha fechado do primeiro ao último botão.

“Buenas, seu Estrumério, esta aparelhagem aqui vem dos esteites, e acha qualquer fio d’água metido a besta e fugidor”. E foi me mostrando uns troços de enterrar na terra, e outros troços de encostar em parede, feito estetoscópio com uma latinha grudada na ponta de duas borrachinhas daquelas que se usa pra fazer funda. “O jaguara aqui”, e apontou pro homem de bombachas castelhanas e lenço branco ao pescoço, “tem educação nos ouvidos exatamente pra decifrar a linguagem do aparelho”. “Dependendo do baruio que vem dos intestinos da residência, o jaguara vai lhe dizer a quantos palmos do chão encontraremos o sangradouro”. Nisso, o de culote que a tudo observa, se intrometeu pra vaticinar: “até hoje não teve escorrimento d’água que fugisse ao nosso control!” Control??? Mas bah!, pensei eu. O loco tem cruza com inglês.

Pra encurtar a conversa, me pus a acompanhar o trio pelas andanças na casa. Começaram desligando a caixa d’água e, aparelhos não mão, foram campear o fio d’água que se perdia e me estava levando à falência. A campereada andava lenta e estimulava conversas e debates. Entre auscultações e olhares palmeando paredes, como se buscassem um boi perdido na várzea, debatiam o positivismo castilhista e a oposição maragata. A guerra civil de 93 comia a pauta. No corredor que leva à cozinha, o de bombacha castelhana reivindicou o matiz do lenço branco e sustentou a legitimidade chimanga pra defender o governo castilhista. O maragato, limpando as mãos na bombacha, mirou no centro dos olhos do gajo e em grosso som, sentenciou um “Amaro Juvenal”. Arrematou ordenando ao jaguara que continuasse o serviço. Acompanhei com a atenção o debate que parecia se encaminhar na direção do entrevero.

“Seu Bostarêncio, parece que é aqui que o Zorrilho mija. Dá uma escuitada”. E me foi entregando os troços de orelha. “É quaaaji despercebido, mas prende bem a atenção, e o senhor vai percebê o baruinho da água correndo pra fora do rumo certo. Como le disse, é como zorrilho que vem mijá na volta das casa só pra encanziná os perros. Não dá nem pra notá, mas faz um estrago danado”.

Nisso, o jaguara pergunta: “Quem é Amaro Juvenal?” “Mas vai te instruir, o guri de merda. Vem me falar em chimango defendendo o Júlio. Os tempos do Júlio eram os tempos dos pica-paus. Boto a brigada a perseguir os camaradas maragatos. Nos tempos do Júlio, não existiam chimangos, orre que bosta! Pedi silêncio, pois queria escutar o vazamento e logo queria resolver meu problema. De fato, vertia da parede, através daquele aparelhinho, um som de bolhas de ar que denunciavam a mijadeira do zorrilho. Mas confesso, fiquei com Amaro Juvenal na cachola. Tirei os fones e nem bem tinha tirado o Maragato perguntou, “ouviu?” Sim! Ouvi! Amaro Juvenal é como assinava Ramiro Barcelos! Chimangos, orre que bosta, Chimango era o Antônio, que era a cara do Velho Borges. “Isso, seu Esterquino, isso!” Vibrou exultante o dono das bombachas balão.

Buenas, o fato é que se grudaram a marreta naquela pobre parede. À medida que o reboco ia caindo, pensei em corrigir o meu nome, pois nome é nome, deve ser protegido e respeitado. Encerrada as funções, volveram os três ao pátio onde eu chimarreando aguardava o fim dos trabalhos. Tudo feito? Perguntei-lhes firme e sério, posto que cara bonita paga sempre mais caro. “Tudo certo!” Me disse o dos culotes, que de fato era o chefe da turma, e como limpinho chegou, limpinho partiria pra estrada. Os outros dois era caliça nas fuças e massa correndo pelas bombachas. Tudo certito, nomais. 

“Buenas, Seu Cagalâncio, é acertar as contas e nos bamo”. Era a deixa que eu precisava. Meu nome é Hescremêncio, me acerte o rabo, mas não me troque o nome. Eis que o maragato tomou a frente e sentenciou: “mas, Seu Hescremêncio, faz mais de 100 anos que os gaudérios de apartamento confundem pica-pau com chimango e ninguém comeu o rabo de ninguém. Com todo o respeito, e com as nossas apologias, erramo, isso é fato, mas foi com a melhor de todas as intenções, e queríamos lhe dar o nome certo, é no nome certo que se escreve a verdadeira a história. O Júlio não foi o Borges nem pica-pau é Chimango, mesmo branca que seja a marca, mesmo com matança entre os lados, penacho não se confunde com lenço”.

Pensei por um pouco e vi que eram sinceros. Paguei-lhes, e nunca mais tive zorrilho inticando com a cachorrada na volta das casa.

 

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