Ricardo Giuliani

A PÉ, BEM ASSIM COMO SAÍ

Os espaços estão ali, livres e prontos para ocupação. A política é como a vida, todo espaço existe para ser emprenhado e, com ou sem gosto, vazio jamais se quedará. Degavarzito nomais me aprochego ao mangueirão de pedra que inda vive perdido no infinito das terras enrugadas e que, por essa ou por outra, já não ocupa função na existência, em que pese o legado cambaleante que vai perdido entre as vagas de um campo que mesmo inerte anda parindo almas, centauros e monarcas.

Os espaços estavam ali recebendo demandas e exigências a preceito. Do fundo das imaginações galponeiras não se via nada além de um lusco-fusco de horizontes construídos por histórias contadas pelos escolhidos pra contar! Dentre pedras e (des)organizações e bostas secas e guanxumas e urtigas brabas e condições humanas, e ideias sem fundo de realidade ou verdade, fui-me entreverando na direção de um passado nem tão distante, dias em que o povaréo na volta da trempe enchia o bucho com o que a terra lhes dava e, nos entre silêncios dos pensamentos e das fantasias, trocavam causos de tempos passados a serviço e a barulho de patas de rês e gritos de bamo, pega, toca, êra, gruda, atira, derruba e outras coisas da lida. A volta da trempe é a volta de um tempo que é repositório de identidades campeiras, reais ou míticas, e o fogo segue fundando civilizações entre causos e histórias de vidas vividas e mitos contados. O mito é a verdade adornada pelo épico, mas, cuidado, entre o mito e o místico corre um tempo efêmero, mais ligeiro e grave que o coice do porco.

O matungo, na borda das pedras irregulares e centenárias, ia limitado pela rédea sogada no pau-de-arrasto, andava pra lá e pra cá mascando freio e nacos de pasto verde. Viver por essas bandas e desse modo não tem nada de heroico, ala fresca, mas não tem nada mesmo. A lida do campo estrutura o rancho e as casas. 

Vista de longe, a campanha é romance, poesia e dedilhados de violão. Com o pé na bosta, co’a tesoura rondando o couro do capão, com a doma que prepara o matungo pro dia a dia, a conversa é outra. O rancho é rancho mesmo. É pobreza pura onde se estocam sonhos que jamais deixarão os pensamentos.

Na cidade, e que bela chorumela, dizem, e pra dizerem ainda fantasiam tudo de um jeito como se a vida no campo tivesse o sabor do mel da lixiguana. Soubessem esses gauchinhos de apartamento a vida braba que é a do rancho, nem brincar de casinha em acompanhamentos estilizados brincariam. Alguns se metem a uma prática ludomaníaca de viver um mês inteiro nas voltas de uma lida imaginária e, com todas as apologias aos que assim agem sinceramente, não é este o Rio Grande a ser lembrado ou comemorado ou, como dizem alguns que já viraram fanáticos por suas próprias crenças, a ser cultuado. O futuro não se constrói com conversa terçada na volta do assado de carne embalada a vácuo e envolta num saquinho de plástico comprado no “super” da esquina! Hay que tirar a bunda do banco e meter a mão não merda! Pergunte presses gaúchos “ad hoc” de onde vem a expressão matambre, seu significado e função, e verás o enrosco em que estamos metidos.

Ora, fosse a vida do gaúcho aquilo que eles representam numa catarse de cartilha, quase que religiosa, como já disse, que maravilha haveria de ser, mas não o é. Viver em casa de torrão grudado no pau-a-pique é coisa pra gente sofrida que não escolhe rumos ou destinos. Chegar nas casas e ver a quincha arriada pelo minuano assoprando do sul, não é coisa que se pareça com nada que diga respeito ao homem descrito por Sarmiento contando Facundo ou descrito nas prosas do Cyro.

O monarca da pampa mistificado da pouca importância ao gaúcho a pé, em verdade o esconde a partir de um frenesi literário que lhe emprestou heroísmos distantes. O herói da pampa é o homem que na pampa sobreviveu. O livre da pampa é o que não se rendeu ao patronato tão decantado nas comemorações farroupilhas. Farroupilhas é o que eram, e isso é verdade! Farroupilha, miseráveis arranchados e vivendo de tudo que o gado vacum podia lhes oferecer.

O frio come solto por essas terras rugosas, e é bom que se saiba que as bandas de cá, da campanha é que falo, em nada conversam com outras bandas que não as da pampa. 

Criou-se um universo homogêneo como se todos fossem iguais e paridos pela mesma mãe e pelo mesmo pai e pela mesma matriz econômica. O rancho da campanha, o rancho do posteiro ou o rancho que se perde nas lonjuras das sesmarias não é o mesmo casebre imigrante. O “Gaúcho” é tipo mui especial e próprio, tem cepa e tradição fincada num modelo político estruturado sobre a imensidão dos desertos verdes dados a la coima aos amigos da Coroa Portuguesa, portanto, sul-rio-grandenses e gaúchos não brotam da mesma estirpe. A distância que há entre um pedaço de povo e outro, determina as possibilidades reais da ida, ou da não ida, ao colégio. O gaúcho é grosso não porque quer, iletrado por prazer ou decisão, mas porque a geografia que o abriga lhe impede junções, fricotes sociais e vigários de igreja.

O clima, o tipo de gente, o molde da lida, o feitio da propriedade, as distâncias medidas em léguas, em tudo, faz o el gaucho diferente do que se tem por aí nos tais de centros de tradições e nas cartilhas que se escreve sobre o que seja ou o que venha a ser o homem que habitou a pampa e que acabou por dar molde a uma cultura intoxicada por algo que nem os fundadores bem desejavam, que o diga Barbosa Lessa, muiiiiito falado, mas quase nada lido.

Quantas e quantas vezes, à sombra dos cinamomos, mirando as ondulações e as curvas perdidas nas cercas de pedra, me enfurnei nas leituras de Barbosa Lessa, Cyro Martins, Alcydes Maya, Augusto Meyer, Rivadavia e aprendi que folclore é folclore, história é história e causos, bom, causos são bons para contá-los e rir na volta da trempe vergada pela carne gorda e pela canha que rega o cerebelo e aceita as empunhadas dos bons conversadores.

É interessante, e vou pensando com os furos do meu poncho, tem CTG por aí batizado de Preto Velho, como se a tradição fronteiriça ou pampeana trou- xesse consigo a profunda e sincera crença africana. O Negro, pelas bandas de cá, foi explorado como mão de obra escrava e jogado na vala das perseguições do latifúndio e tudo pela propriedade da terra, pela sanha burra de cada vez mais concentrar o poder sobre o naco de chão como sinônimo de poder político. O rancho pobre entrevado num capão de mato na fronteira das estâncias nunca foi propriedade do peão, sempre “bondade” de patrão. Eis a história, o resto, bem, o resto é diversão e andar mambembe e representações criativas.

Sabem vocês que pelas bandas de cá, e até os dias de hoje, o terreiro das casas de religião é feito nos fundos das casas. E isso porque o negro era perseguido por exercitar suas crenças ancestrais; e ainda, ali nas bandas da BR 101, pra quem sobe à direita, encontrarão o CTG de Preto Velho que lhes disse; ora, história é história, folclore é folclore e religião, bem, deve ser não mais que religião. Quando a vida contada assume feições de crença e querença, por supuesto, diria o paisano, a lança farrapa adquire sentido e função.

E que me desmintam os furos no poncho, viver pelas bandas da fronteira nunca foi coisa pra cola-fina. “Ir pras casas”, assim diziam os gaúchos quando despacio voltavam do campo pro rancho. As casas de estância, sempre expressaram a divisão social que organiza o mundo das sesmarias, dos grandes proprietários e das lonjuras infinitas regadas a horizontes e mais horizontes. Quando o gaúcho volta, volta pras casas. Sim, e lá volto eu arrebentado pelo frio de agosto, e me acostumo com a ideia de voltar pro rancho a pé, bem assim como saí.

 

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